A sensibilidade de Ainda Estou Aqui

Por Maria do Carmo Alvarenga

Em 10 de novembro de 2024

Ainda Estou Aqui (Brasil, França, 2024)
Direção: Walter Salles
Roteiro: Murilo Hauser, Heitor Lorega (baseado na obra de Marcelo Rubens Paiva)
Elenco: Fernanda Torres, Fernanda Montenegro, Selton Mello, Otavio Linhares, Maeve Jinkings, Marjorie Estiano, Antonio Saboia, Camila Márdila, Valentina Herszage, Humberto Carrão, Helena Albergaria, Dan Stulbach, Luiza Kosovski, Olívia Torres, Caio Horowicz, Gabriela Carneiro da Cunha, Maria Manoella, Carla Ribas.

Ainda Estou Aqui de Walter Salles é uma obra sensível com Fernanda Torres simplesmente fantástica no papel da esposa do ex-deputado Rubens Paiva.  Assisti à produção, instigada pela curiosidade provocada  pelos dez minutos de aplausos em pé no 81º Festival de Veneza e pela chuva de elogios da imprensa. E, sim, faço coro a eles:  é uma obra-prima.

             A história é uma adaptação do livro autobiográfico Ainda Estou Aqui de Marcelo Rubens Paiva. A personagem principal é Maria Lucrécia Eunice Facciolla (Fernanda Torres), mãe de Marcelo e esposa de Rubens Paiva (Selton Mello), ex-deputado, cassado após o golpe de 1964, que é retirado de sua casa pelo regime militar, com a desculpa de que vai  prestar um depoimento e nunca mais volta para casa.

             Fernanda Torres brilha ao interpretar Eunice como uma mulher forte, que luta para descobrir a verdade sobre o marido desaparecido, assume sozinha a criação dos filhos e desdobra-se para manter o equilíbrio e não os traumatizar com o sumiço do pai. Em uma das cenas mais tensas, Eunice e a filha Eliana (Luiza Kosovski) também são levadas pelos militares para prestar depoimento. Ela fica presa por vários dias, numa espécie de tortura psicológica, sem saber notícia do marido e dos filhos.  Nem mesmo nesse momento ela se desequilibra. Eunice é uma personagem tão marcante, mesmo quando o filme mostra os momentos felizes da família de classe média alta, e também na obstinada busca pelo paradeiro do marido.

              O trabalho de Walter Salles resulta numa obra primorosa, com detalhes que em muitos momentos tornam as passagens um tanto poéticas, como um subterfúgio para retratar os momentos felizes comuns a qualquer família. Podemos perceber essa poesia quando Rubens Paiva finge enterrar na areia o dente caído da filha, ou quando pais e filhos dançam num almoço com amigos em casa.

              A ambientação de época, posto que a história acontece no início da década de 70, também merece muitos aplausos para a direção de arte  de Carlos Conti e a fotografia de Adrian Tejido. De figurino a elementos da época, tudo está muito bem caracterizado. A escolha de tratar as imagens como se tivessem sido gravadas por uma Super 8 dá um toque saudosista e especial ao filme. A própria câmera Super 8 aparece como um objeto simbólico da época nas mãos de Veroca (Valentina Herszage), a filha mais velha de Rubens e Eunice. A moça registra momentos marcantes da vida dela e da família e a gente sente como se nas imagens dela, pelo menos ali, a verdade fica registrada. Outra interessante opção da fotografia, são os planos closes nas vitrolas e nos vinis de todos os tamanhos, provocando pontadas nos corações de todos nós que vivemos a época dos bolachões.  Dessas imagens, que por si só já nos transportam pelo tempo, desponta a belíssima trilha sonora de Warren Ellis embalando a dramaticidade e reforçando ainda mais o espírito dos anos 70.

Ainda Estou Aqui já conquistou o prêmio de melhor roteiro no 81º Festival de Veneza e o Favorito do Público no Festival Internacional de Cinema de Vancouver, no Canadá. Penso que muitas premiações ainda virão e inclusive, apresenta-se como um forte candidato ao Oscar 2025. Para além do sucesso comercial, que é importante, a valorosidade dessa obra é imensa no que se refere a reconhecer e provocar reflexões sobre um período da história do Brasil que nunca deverá ser esquecido e, também, sobre as questões humanas tão presentes nas famílias e no íntimo de cada um. Walter Salles mais uma vez nos brinda com um trabalho sensível e de competente esmero.


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